Dia Mundial da Poesia
Há-de Haver
Há-de haver uma cor por descobrir,
Um juntar de palavras escondido, Há-de haver uma chave para abrir A porta deste muro desmedido. Há-de haver uma ilha mais ao sul, Uma corda mais tensa e ressoante, Outro mar que nade noutro azul, Outra altura de voz que melhor cante. Poesia tardia que não chegas A dizer nem metade do que sabes: Não calas, quando podes, nem renegas Este corpo de acaso em que não cabes. José Saramago, in Os Poemas Possíveis |
Aos Poetas
Somos nós
As humanas cigarras.
Nós,
Desde o tempo de Esopo conhecidos...
Nós,
Preguiçosos insectos perseguidos.
Somos nós os ridículos comparsas
Da fábula burguesa da formiga.
Nós, a tribo faminta de ciganos
Que se abriga
Ao luar.
Nós, que nunca passamos,
A passar...
Somos nós, e só nós podemos ter
Asas sonoras.
Asas que em certas horas
Palpitam.
Asas que morrem, mas que ressuscitam
Da sepultura.
E que da planura
Da seara
Erguem a um campo de maior altura
A mão que só altura semeara.
Por isso a vós, Poetas, eu levanto
A taça fraternal deste meu canto,
E bebo em vossa honra o doce vinho
Da amizade e da paz.
Vinho que não é meu,
Mas sim do mosto que a beleza traz.
E vos digo e conjuro que canteis.
Que sejais menestréis
Duma gesta de amor universal.
Duma epopeia que não tenha reis,
Mas homens de tamanho natural.
Homens de toda a terra sem fronteiras.
De todos os feitios e maneiras,
Da cor que o sol lhes deu à flor da pele.
Crias de Adão e Eva verdadeiras.
Homens da torre de Babel.
Homens do dia-a-dia
Que levantem paredes de ilusão.
Homens de pés no chão,
Que se calcem de sonho e de poesia
Pela graça infantil da vossa mão.
Miguel Torga, in 'Odes'
Miguel Torga, pseudónimo de Adolfo Correia da Rocha
(São Martinho de Anta, 12 de Agosto de 1907 — Coimbra, 17 de Janeiro de 1995) |
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